12.8.08

Texto de André Guedes para folha de sala

Tulla Ellice Finklea

É provável que a tendência que temos nestes dias para

estabelecer, ou para estabelecerem por nós, ligações entre

factos e informações mais ou menos previsíveis, mais ou

menos úteis, me tenha feito pensar em Cyd Charisse

num dos ensaios de Strange Fruit.

O espaço de ensaio acontecia naturalmente no lugar onde

decorria a montagem da peça, um cenário inacabado feito

de coisas por vir, que se confundia com a sua própria

desmontagem, os objectos ou a falta deles de alguma forma

anunciavam um acabar.

Em determinado momento, com um dos actores no espaço,

entra o outro em cena descendo do ar, a partir de uma

acrobacia suspensa numa trave e praticando, de seguida, no

solo, ao som de uma música, uma pequena dança.

Esses passos de dança, que articulavam em simultâneo

braços e pernas, acompanhavam a música, e esse todo não

sendo mimético em relação a nada em particular, evocava a

memória ampla do espectáculo, daquilo que já assistimos

repetidas vezes ao vivo em teatros, em cinemas ou mesmo

na televisão.

Foi nesse momento que as imagens retrospectivas que

vira a propósito do desaparecimento (penso que no dia

anterior) de Cyd Charisse confluíram justamente nos

breves instantes daquela dança tão desajeitada se a

tivéssemos que comparar à perícia coreográfica dos filmes

onde charisse participou.

Ao longo do ensaio o actor (efectivamente, a actriz)

continuou juntamente com o seu parceiro, a descrever no

espaço outras ocupações da cena igualmente coreográficas.

Pareceu-me que, mais do que a necessidade de dar um

sentido ao conjunto de textos fragmentários, o que ali

ressaltava era a importância que os dois actores

demonstravam nos seus movimentos em cena e nas

transições entre os vários episódios do espectáculo anotados

em duas grandes folhas colocadas na parede.

Tratava-se de pensar para onde ir, mas sobretudo de como

ir, de aqui para ali. Era igualmente a duração e a solenidade

do acto e do gesto que tornava tudo aquilo potencialmente

significativo, e que substanciava a passagem daquele

mesmo tempo. Aquele podia ser o texto da peça, o

movimento e o modo de estar ali em cena.

Todavia, à medida que assistia às sucessivas deambulações

dos dois actores e ao adensar do universo onde estes se

moviam, parecia que esse texto queria escapar ao espaço

onde estava a ocorrer. Os elementos arquitectónicos e os

materiais em cena, bem como os fatos e as palavras, que

estavam ali como pretexto e apoio à ocupação de um lugar,

tinham a ver com um outro tempo e um outro espaço fora

dali. O espaço cénico reduzido (como o da própria loja onde

a companhia de teatro tem a sua residência) e as sugestões

veiculadas pelos actores enunciavam de certa forma a

transposição daqueles mesmos limites. a cena caminhava

no sentido daquilo que permanecia (ou permaneceu) para

além dela, em espaço, mas essencialmente em tempo.

Irremediável circunstância ou não do teatro, o que era ali

feito aparecia como uma evocação de algo vivido e

experienciado anteriormente pelos próprios ou por outros. E

como alguém referiu, os acontecimentos passados não

aconteceram, estão à espera de acontecer no momento em

que pensarmos neles. Por isso, se de facto o presente e este

momento agora (a circunstância) que nos permite fazer com

que o passado exista e regresse, o presente é de forma

recíproca, feito da ausência de materiais e pensamentos que

necessitamos construir agora para os usar agora.

E talvez por isso que e possível nestes dias, ao ler vários

obituários, fazer passado ao reemergir os tantos

nomes que teve uma mesma actriz e bailarina. Lily Norwood

quando debutou nos écrans de Hollywood em “Something to

Shout About”, Felia Sidorova e Maria Istomina enquanto

dançou sob a orientação de David Linchine e Leonid Massine

nos Ballets Russes de Montecarlo, Tula Ellice Finklea quando

nasceu em data pouco precisa (1921 ou 1922) em Amarillo

no Texas. Indeed, life’s a strange fruit.

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