Tulla Ellice Finklea
É provável que a tendência que temos nestes dias para
estabelecer, ou para estabelecerem por nós, ligações entre
factos e informações mais ou menos previsíveis, mais ou
menos úteis, me tenha feito pensar em Cyd Charisse
num dos ensaios de Strange Fruit.
O espaço de ensaio acontecia naturalmente no lugar onde
decorria a montagem da peça, um cenário inacabado feito
de coisas por vir, que se confundia com a sua própria
desmontagem, os objectos ou a falta deles de alguma forma
anunciavam um acabar.
Em determinado momento, com um dos actores no espaço,
entra o outro em cena descendo do ar, a partir de uma
acrobacia suspensa numa trave e praticando, de seguida, no
solo, ao som de uma música, uma pequena dança.
Esses passos de dança, que articulavam em simultâneo
braços e pernas, acompanhavam a música, e esse todo não
sendo mimético em relação a nada em particular, evocava a
memória ampla do espectáculo, daquilo que já assistimos
repetidas vezes ao vivo em teatros, em cinemas ou mesmo
na televisão.
Foi nesse momento que as imagens retrospectivas que
vira a propósito do desaparecimento (penso que no dia
anterior) de Cyd Charisse confluíram justamente nos
breves instantes daquela dança tão desajeitada se a
tivéssemos que comparar à perícia coreográfica dos filmes
onde charisse participou.
Ao longo do ensaio o actor (efectivamente, a actriz)
continuou juntamente com o seu parceiro, a descrever no
espaço outras ocupações da cena igualmente coreográficas.
Pareceu-me que, mais do que a necessidade de dar um
sentido ao conjunto de textos fragmentários, o que ali
ressaltava era a importância que os dois actores
demonstravam nos seus movimentos em cena e nas
transições entre os vários episódios do espectáculo anotados
em duas grandes folhas colocadas na parede.
Tratava-se de pensar para onde ir, mas sobretudo de como
ir, de aqui para ali. Era igualmente a duração e a solenidade
do acto e do gesto que tornava tudo aquilo potencialmente
significativo, e que substanciava a passagem daquele
mesmo tempo. Aquele podia ser o texto da peça, o
movimento e o modo de estar ali em cena.
Todavia, à medida que assistia às sucessivas deambulações
dos dois actores e ao adensar do universo onde estes se
moviam, parecia que esse texto queria escapar ao espaço
onde estava a ocorrer. Os elementos arquitectónicos e os
materiais em cena, bem como os fatos e as palavras, que
estavam ali como pretexto e apoio à ocupação de um lugar,
tinham a ver com um outro tempo e um outro espaço fora
dali. O espaço cénico reduzido (como o da própria loja onde
a companhia de teatro tem a sua residência) e as sugestões
veiculadas pelos actores enunciavam de certa forma a
transposição daqueles mesmos limites. a cena caminhava
no sentido daquilo que permanecia (ou permaneceu) para
além dela, em espaço, mas essencialmente em tempo.
Irremediável circunstância ou não do teatro, o que era ali
feito aparecia como uma evocação de algo vivido e
experienciado anteriormente pelos próprios ou por outros. E
como alguém referiu, os acontecimentos passados não
aconteceram, estão à espera de acontecer no momento em
que pensarmos neles. Por isso, se de facto o presente e este
momento agora (a circunstância) que nos permite fazer com
que o passado exista e regresse, o presente é de forma
recíproca, feito da ausência de materiais e pensamentos que
necessitamos construir agora para os usar agora.
E talvez por isso que e possível nestes dias, ao ler vários
obituários, fazer passado ao reemergir os tantos
nomes que teve uma mesma actriz e bailarina. Lily Norwood
quando debutou nos écrans de Hollywood em “Something to
Shout About”, Felia Sidorova e Maria Istomina enquanto
dançou sob a orientação de David Linchine e Leonid Massine
nos Ballets Russes de Montecarlo, Tula Ellice Finklea quando
nasceu em data pouco precisa (1921 ou 1922) em Amarillo
no Texas. Indeed, life’s a strange fruit.
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